Os jovens têm que saber isso: a vida passa e se esvai. Minuto a minuto. E você não pode ir ao supermercado comprar a "vida". Então, lute para vivê-la!
José Alberto Mujica Cordano
O apreço pela jornada é uma questão de sobrevivência. É preciso gostar do eu, topar se arrepender, ver orgulho na caminhada por si só. Sabe, não dá pra ter tristeza muito longa, nem alegria de mentira. Há tempo e há vida.
MAGALHÃES, Mallu. Documentário Turnê Vem. 2017-2018.
“Mas é preciso ter força/ É preciso ter raça/ É preciso ter gana sempre/ Quem traz no corpo a marca/ Maria, Maria/ Mistura a dor e a alegria/ Mas é preciso ter manha/ É preciso ter graça/ É preciso ter sonho sempre/ Quem traz na pele essa marca/ Possui a estranha mania/ De ter fé na vida”. (Milton Nascimento)
Quando era criança, por volta dos seis anos, me lembro bem, aliás, fato que nunca mais esqueci – uma menina branca, de cabelos loiros e olhos bem azuis da minha escola. Eu, sem saber por que, admirava gratuitamente aquela encantadora menina, sem mesmo saber o que era admiração.
Certo dia, quando minha mãe buscou-me da escola e resolveu passar na casa de minha avó (vó Lilia), eu, criança estranha brincava na copa escura pensando loucuras. Minhas loucurinhas de criança filósofa, quando me deparei ali na minha intimidade, com a menina dos meus sonhos. Fiquei anestesiada. Que raios aquela “princesa” fazia ali? Sua mãe havia levado costura para minha tia, a Maria Costureira, e ela, doce e meiga acompanhava a mãe timidamente. Eu tinha seis anos e ela cinco.
A copa, a meus olhos ficou iluminada com sua presença, sua pele clara e macia, seus olhos azuis emanavam luz pelo cômodo sombrio. Olhos grandes, assustados, confusos e cor do céu. Cabelos lisos, sedosos e amarelos. Aquela menina era tudo que eu queria ser e não podia. Eu a via na escola e me entristecia. Por que Deus fazia algumas pessoas tão belas e outras não? Tentava por mim mesma decifrar esse mistério. Por que havia eu ter nascido tão feia, de pele negra, cabelos crespos, testa avantajada?
Aquele dia nós duas brincamos, coisa que não fazíamos na escola. Eu a tocava cuidadosamente, como um fiel toca uma imagem santa, na crença de alcançar alguma graça, alguma cura ou verdade. E naquele momento eu realmente desejava alcançar a graça de um dia ser branca e ter cabelos “bons”, naquele momento pedia em silêncio a cura desse mal de ter nascido negra. Eu buscava a verdade sobre mim mesma, porque não podia ser como ela? A Santa Priscila?
Priscila era o nome dela. E, enquanto brincávamos, eu ficava feita boba, admirando sua beleza. Meninas como ela eu só via na televisão.
Sugeri que brincássemos de “salão de beleza”. Desculpa é claro para poder tocar seus cabelos demoradamente. Como eram belas as suas madeixas lisas, como deslizava por minhas mãos pequenas e como cheirava bem aqueles cabelos. Priscila interrompeu a “brincadeira” para ir ao banheiro, mostrei-a onde ficava e a esperava avidamente, com medo que ela desistisse de brincar ou que sua mãe a chamasse para ir embora. Enquanto ela estava no banheiro punha-me a pensar – “aquela menina deve ter ido fazer xixi, uma menina tão bonita quanto ela não pode fazer coisa tão suja como cocô”. Eu fazia cocô, mas também eu não era bonita, eu não era nada. Mas Priscila, a quem eu chamava carinhosamente de Pri, com tão pouco tempo de intimidade, ela não. Ela não devia fazer cocô. Tão gracinha, tão fofa, imaculada e divinizada por mim.
Priscila era minha antítese.
Depois que ela foi embora estranhamente senti algum vazio. Meu “sonho” nunca estivera tão perto como naquele dia. Dezoito anos se passaram. Priscila certamente jamais recordará desse dia. Ao contrário de mim, que carrego essa lembrança como um fardo. E de tempos em tempos, essa história ganha significados diferentes, hora trazendo superação e coragem, hora trazendo angústia e medo.
Priscila era tudo que eu queria ser e não podia, ela era branca, e isto bastava. Naquele mesmo fim de tarde, de uma brincadeira aparentemente inocente, me dei conta que eu jamais seria como Priscila, e estava condenada o resto da vida a ter a pele escura. Ao concluir isso senti medo e vazio. Nesta época eu não fazia ideia do que acontecia, eu não sabia exatamente o que era ser negra, mas sabia com muita precisão que ser branca como a Priscila era algo bom, sabia isso só de olhar para ela. Assim, naturalmente doce, naturalmente bela, naturalmente “princesa”, naturalmente santa, “virgem Maria”.
Naquela época eu ainda não sabia o que era racismo, mas o sentia nas minhas entranhas. E como doía não poder ser como Priscila. Que gosto amargo experimentar ainda na infância a sensação de não ser nada, que gosto amargo se curvar ainda tão inocente diante da brancura, sem saber exatamente o que nos leva a tanto.
Quando Priscila foi embora, entrei correndo no banheiro para confirmar minha dúvida: “gente branca caga?” Fiquei lá por alguns minutos, observei a bosta da Priscila. A bosta que ela me deixou como recompensa sem mesmo saber. O cocô boiava e eu o olhava sem pensar muita coisa. Eu nem me importei com o mau cheiro. Na verdade eu não podia nem senti-lo. Diante da brancura dela não havia bosta, não havia odor, não havia mal.
Mas havia eu. Um eu alheio a mim mesma. Um eu descontente por não poder ser como Priscila e pior, nunca poder vir a ser.
Havia dor também, esta é inevitável e desperta cedo nessa gente preta. Ainda menina é preciso lidar com um monte de coisa de gente grande e isso fatalmente não tem escolha. Priscila jamais recordará de mim. Aliás, Priscila hoje, não é uma criança branca, loira e com olhos claros. Priscila é hoje uma mulher. Branca, loira, de olhos azuis, magra. “Perfeita”. Priscila hoje, provavelmente pensa que cor é só um detalhe, para ela a cor não importa porque somo todos iguais. Priscila hoje é contra as cotas e afirma categoricamente que racismo não existe. O mundo da Priscila mulher hoje é tão irreal quanto o mundo da Priscila menina ontem.
E eu? Eu hoje, dou graças à Deus de ser diferente da Priscila. Eu hoje, agradeço meus antepassados pelo legado deixado, principalmente o legado da cor, essa cor magnificamente negra. Eu hoje sei que estou muito além de onde Priscila possa estar, ou ousa estar um dia. Hoje, eu sou um mundo inteiro e além. A brancura da Priscila um dia escureceu minhas vistas. E então eu passei a ver tudo negro. Como tinha que ver.
E ser.
Aline Rafaela Lelis
(Escrito em 19/12/2013)
Assim ela me escreveu:
“Dizem que na vida quem perde o telhado ganha as estrelas. É assim mesmo. Às vezes, você perde o que não queria, mas conquista o que nunca imaginou. Nem tudo depende de um tempo, mas sim de uma atitude. O tempo é como um rio, você jamais tocará na mesma água duas vezes. Aproveite cada minuto de sua vida, não procure pessoas perfeitas, mas sim aquelas que saibam o seu verdadeiro valor.”
E assim fiquei mais tocada e muito mais grata pela compaixão dessa mulher, que diz o que preciso ouvir e no momento exato. Isso é mais que psicologia, é espiritualidade.
Meu velho me diz com tanta certeza para eu ter calma e caminhar devagar. Ele diz como se quisesse me alertar para algo maior, para um nível de consciência mais elevado, que só adquirimos com o tempo. Quando me sinto um tanto que desesperada e com medo do futuro, ele chega de mansinho e me diz daquele jeito de quem tem certeza, que tudo vai dar pé. E enquanto meu velho fala, eu observo seus olhinhos serenos e sinto neles tanta verdade, que eu mesma já me convenci que dar certo é a minha única opção.
Aline Rafaela
O amor que eu acreditei ser um atalho, era um desvio planejado, obra do acaso, escolha imatura de uma juventude que se diz adulta, mas que quer mesmo é viver fantasias alimentadas na adolescência, sem nenhuma clemência pela razão sufocada no peso da existência não explicada e desacreditada. Atalhos e desvios fazem parte de uma só jornada, e não importa a idade, sempre haverá sensações de busca, de perda, abandono, lugar errado e vivências pela metade.
Aline Rafaela
Quando a minha alma se afastou de mim, perdi-me em labirintos de pensamentos confusos e sem fim. Meu corpo se enfraqueceu e todo o senso de proteção que eu tinha se foi. Passei a viver desprotegida como se eu fosse uma tartaruga sem casco, que diante do perigo, não pudesse se esconder. Fiquei durante anos assim, nua, enfrentando o inverno gelado despida de dignidade.
Para os xamãs, quando isso acontece, quer dizer que a nossa alma tomou um susto. E era exatamente assim que eu me sentia, assustada, porém, sem reação.
No caminho encontrei muitas pessoas dispostas a sangrar as feridas ainda expostas. E elas cutucaram cada lesão num tom sádico, sem compaixão ou misericórdia. É incrível como as pessoas diante da fraqueza das outras, constroem suas fortalezas. Pura vaidade, e de certa maneira a pior fraqueza de todas.
Encontrar a minha alma-essência, que hoje não está mais perdida, mas sim escondida, é o que tem lentamente me movimentado. Sinto o meu coração bater de modo automático, assim como a minha respiração, que inspira qualquer coisa parecida com ar. Os meus olhos há muito tempo não veem nada de novo. Meu tato já não sabe mais o que é desejo, ou prazer, vive com medo do porvir. Estou em estado de flor, aquela florzinha murcha que precisa de cuidados para não morrer.
Todos nós viemos ao mundo despreparados. Para o espetáculo que é a vida não há ensaio. A peça se desenrola sem uma passada de roteiro breve, quando nascemos, já caímos no palco como personagens principais, diante de uma plateia que nos aguarda ansiosas.
Culpei-me muito por não saber como reagir diante de um público desconhecido. Eu sorria sem graça me perguntando lá no fundo se havia agradado aqueles expectadores.
Agradar é um verbo perigoso. Quando era criança fui ensinada a não dizer o que eu penso para agradar as pessoas. Aprendi também, que mulheres devem ser polidas, bem comportadas, cozinhar bem e principalmente agradar o sexo oposto.
Na infância a gente aprende subliminarmente tanta coisa inútil! Nessa época já começamos a nos distanciar de nós para tornarmos quem não somos. Eu resisti muito, resisti anos para não me perder, mas chegou um tempo que a minha fé era pouca, e eu fiquei feito louca, perdida na multidão. Hoje em dia penso que sou digna de sentir meu coração vivo novamente. Sou merecedora de amor e de pessoas caridosas e cheias de luz à minha volta.
Para me encontrar não meço esforços. Distancio-me aos poucos de tudo aquilo que não sou. Gradativamente consigo adentrar a minha floresta sagrada. E é lá o lugar de reencontros. Topar de frente comigo mesma é questão de tempo. E, quando isso acontecer, quero abraçar-me demoradamente e tocar cada pedacinho de mim, me sentir amada e desejada. Feliz e lisonjeada com tanta auto dedicação.
Há pessoas que também se sentem flores, mas ficam à mercê dos outros para serem regadas e cuidadas. Eu estou cuidando do meu jardim já faz um tempo, observo tranquila e orgulhosa cada sementinha que cresce lenta. Sigo paciente (na maioria das vezes), certa de que não vai demorar para o meu jardim florir todo. Então, muitas flores irão me enfeitar, e meu perfume vai se espalhar pelos quatro cantos. Perfume de dor e pranto, mas também perfume superação, de amor próprio, de amadurecimento e de felicidade transbordante.
De tempos em tempos, precisamos parar para cuidar de nós mesmos e nos ver mais como terra, como água, como luz e como vento. Deixar que os mistérios tomem conta do coração e entender que viver ultrapassa todo o entendimento.
Aline Rafaela
Se só a morte em si
Me fizer lembrar da vida
Que triste fim seria
Esta minha jornada.
Como trazer a vida
Para dentro de um coração
Que não crê em mais nada?
Não sinto pulsar
Uma gota de esperança
Em minhas veias.
Meus olhos pedem socorro
Meu sono é um aviso
De que estou cansada demais
Para lutar sozinha
Queria que viesse até mim
E me dissesse:
"tudo vai ficar bem
Você não está sozinha
Vamos até a cozinha
Vou te fazer um jantar,
Não se preocupe minha querida!
Que eu não solto da tua mão
até você voltar a caminhar"
Se só a morte em si
Me fizer lembrar da vida
A morte simbólica
O que significa?
Que devo reagir antes da morte em si chegar?
Que devo viver e sentir vida pulsar?
O que eu mais quero é acordar
Acordar da letargia, eu juro!
Só não sei por onde começar,
E também estou sem forças!
Aline Rafaela Lelis
O leito de dor é um campo de ensinamentos sublimes e luminosos. Nele, a alma exausta vai estimando no corpo a função de uma túnica. Tudo o que se refira à vestimenta vai perdendo, consequentemente, de importância. Persevera, contudo, a nossa realidade espiritual.
Emmanuel (Espírito). Paulo e Estevão: episódios históricos do cristianismo primitivo: romance/ ditado pelo espírito Emmanuel; [psicografado por] Francisco Cândido Xavier. 40. Ed. - Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2004. p. 156
“Confie em quem vê três coisas em você: a tristeza por trás de seu sorriso, o amor por trás de sua raiva e a razão por trás do seu silêncio.”
— Caio Fernando Abreu. (via alentador)
Setembro
O tempo muda
muda a estação
A vida nos empurra para a transição
Da inércia do inverno
Para o calor do verão
Que nos coloca em movimento
E o verbo desabrocha
Ensina-nos a ser mais como rosas
Lançamos luz no passado frio
E escolhemos florir na coragem
Na passagem
De um tempo cinza para outro
Aceitamos o novo
Aprofundamos a visão
Mergulhamos no mar imenso
Da nossa própria solidão
E nos sentimos fortes inteiras,
À nossa maneira
Sorrimos à toa,
Debochamos do que passou
Nos reconhecemos transitórias
Nos descobrimos notórias
Em cada verso, cada pensamento, cada momento
Setembro tem disso
É ritualístico, tem cor amarela
Recebe a primavera
Faz florir onde antes não havia possibilidade
Setembro tem essa personalidade
Por trazer a primavera traz a esperança
Por ser esperança nos embala na dança
Nos prepara para o renascimento
Tempo de fins e recomeços
Novos começos de luz e amor
Onde fatalmente buscamos ser mais
Como flor.
Aline Rafaela Lelis